Escrevo este texto com a Gioconda a olhar intrigada para o aparecimento das letras e com a Irony a roçar-se junto aos meus pés e a querer também subir para as minhas pernas. A Iwo deve andar a «chatear» a minha mulher e os meus filhos na sala e a Gu está, como sempre, a aproveitar o frio dos mosaicos do hall. Os outros andam por aí espalhados, lembrando-se aos poucos que nós existimos do alto da sua sapiência. Os bebés dormem, ainda mais inocentes que os gatos adultos.
Escrevo este texto sem rumo e perdoem-me os meus amigos suecos, dinamarqueses, alemães, espanhóis, mas escrevo-o só em português porque traduzir é uma obrigação e eu não me sinto obrigado a fazer nada. Escrevo porque apetece escrever e porque essa é uma das razões deste blog existir. Escrevo feliz porque há muitos meses começámos a criar bosques e porque, para nós e sem qualquer hipocrisia, eles são os nossos melhores amigos. Sentem o que nós sentimos, vivem o que nós vivemos. Não lhes podemos pedir mais nada.
Mas também estou triste. Hoje li um relato assustador num fórum sobre a morte de um gatinho, escrito pelo dono, e revivi ali a morte da minha Buick, primeiro nos meus braços depois nos da minha mulher, impotentes, a caminho de um veterinário que fica a 5 minutos de distância. Revi a cara dos meus filhos quando viram aquele-que-devia-salvar-a-sua-vida reconhecer-se também impotente para a salvar. Sei que ao escolher fazer o que faço vou ter tantas tristezas como alegrias e tenho-me preparado para isso. Ou pelo menos julgo que tenho. Mas nunca se está tão preparado como se pensa.
A Buick está bem, acredito. Eu também estou bem, acredito. Podem voltar a acusar-me de estar a usar a sua morte para qualquer coisa, que o que menos importa é o que as outras pessoas pensam. Aliás, não me importa o que as outras pessoas pensam. Eu tive o prazer de estar com ela o tempo que ela quis estar comigo, e fico feliz por ela se ter cruzado no meu caminho só por gostar de gatos pretos. Fico feliz também por ter os meus gatos porque são menos pessoas a preencher o meu mundo. Alguém disse e tem razão: quanto mais conheço as pessoas mais gostos dos animais. Eu sublinho, reforço, risco por baixo um duplo-traço.
É verdade que muitos dias nos perguntamos se com outros veterinários as coisas teriam sido diferentes. Se em vez de virarmos para a direita tivéssemos virado para a esquerda... Talvez, não sei. É que também sabemos que fizemos sempre as coisas certas, tomámos sempre as decisões mais correctas. Isso eu tenho a certeza. Lembro-me que os primeiros dias foram difíceis, que algumas memórias ainda são, mas o tempo e sobretudo os outros gatos preencheram-nos as almas. A eles temos de agradecer. Ao Bryn por me pedir tantas festas, ao Mouro por roubar batatas acabadas de cortar, à Guyane por se deitar aos meus pés, à Gio pelas corridas intermináveis no corredor, à Josy pelo que sempre significou para mim, à Indra por se ocupar da Ana quase em exclusivo e pelos seus lindos bebés, às pequenas Iwo e Irony pelas brincadeiras que enchem a casa.
Fez há três dias seis meses que a Buick disse «até já». Por ter um emprego que me rouba bem mais do que oito horas diárias não consegui ter tempo para lhe mandar um beijo desde a minha insignificância. Aqui vai, pantera.
(by Luís)